domingo, 27 de março de 2011

Quando os olhos choram

Quando os olhos choram

Ele estava sempre ali, lambendo minhas canelas quando eu saia do banho, abanando um cototo de rabo, se fingindo de toco pra ganhar um afago.
É aquele amigo que sente a minha dor quando choro, quando me entristeço ele se achega e finge que é somente mais uma parte do meu corpo, colado à minha perna, ganho uma lambida no rosto quando me descuido, e ele ainda acha que Fez a maior graça do mundo, pois deixa a língua cair pro lado e se sente realizado por me mostrar que está ao meu lado e que é meu amigo.
Não me pede aval, não solicita reajuste de carinhos, só me pede emprestado mais um abraço pra me pagar em dobro logo depois. Se eu permitisse, ele me antecipava pulos e lambidas.
E um dia ele adoeceu... E eu descobri o tamanho de meu amor por ele. E ele a cada dia definhava mais... já não comia, não bebia, já não abanava o cotoco... quando me aproximava ele somente me olhava com um olhar embaçado, sem vida, sem alegria.
Ao procurar ajuda médica, na esperança da recuperação imediata, me deparei com as limitações da medicina veterinária.
Nos dias em que ele era estendido numa maca dura e fria pra tomar soro, eu sentava ao lado dele e torcia para que não só o soro circulasse pela sua corrente sanguinea, mas também um pouco da alegria que ele me proporcionou na sua curta vida de 6 anos, um pouco de alivio para a sua dor, um pouco de paz para seu pequeno corpo alquebrado pela doença.
E transcorre um dia... dois... três... e nada do meu amiguinho melhorar, só piora, eu vejo meu pequeno cãozinho definhando, morrendo, me abandonando, e foi nessa hora que percebi que não era somente ele quem precisava de mim, eu precisava muito mais dele, da sua companhia, da sua alegria, da sua amizade.
Quando começaram as convulsões, e o quadro neurológico piorou na sua fase terminal, ele  me olhava com aquele olhar apelativo como se gritasse.:
- Me ajude, estou sofrendo, você é minha protetora e minha amiga...
E quando eu vi que lágrimas escorriam de seus olhos, aqueles olhos que sempre brilhavam quando me olhava, aqueles olhos que sorriam quando eu surgia após breves ausências... a dor foi tamanha, como se houvesse um rasgo no peito, uma bola imensa descia pela minha garganta, e não foi mais possível conter o choro e a dor.
Ambas as lágrimas (minha e dele) sendo sinônimo de dor e angustia, e nesta hora tive que tomar uma decisão importante.: Interromper o tratamento médico, que mais nada podia fazer pelo meu amiguinho, abandonar aí o último fio de esperança  na medicina, e partir para o tratamento alternativo, onde o ingrediente maior é o meu grande amor e minha imensa fé, e o poder dos “chazinhos da vovó”, que cura desde paixão recolhida até achaques do corpo e da alma.
“Mãe”  e  “tia” revezavam-se nos cuidados, carinhos e chazinhos.
O chá de quebra-pedra, de gota em gota pelo canto da boca, para quebrar o gelo da morte e fazer os seus rins funcionarem.
O chá de pobre-velho, para que meu pobre amiguinho reagisse, não me abandonasse, pois minha necessidade afetiva por sua companhia era muito grande, eu ainda não estava preparada para perdê-lo.
A água de coco, pura, natural, no mesmo sistema, pois nem suas mandíbulas nem seu organismo tinham mais forças para sugar os alimentos, e ele precisava hidratar-se, caso contrário o líquido da vida secaria.
O chá de conta-de-lágrimas, para afastar a infecção desse montinho de ossos em que se transformou meu pequenino amigo.
A água de fubá, constante mais em pequenas doses, para que ele saiba que o alimento ainda faz parte de sua vida.
E principalmente amor, muito amor, para retribuir cada lambida, toda patada que um dia sujou minha roupa na hora de sair, todo latido de felicidade quando me via, toda abanada de rabo a festejar a minha presença, e mais importante ainda,  a fé.
Quando eu terminava de rezar o terço da quaresma, colocava sobre o seu corpinho quase sem vida o rosário de orações e pedia por ele.
Não é perjúrio, pois ele também é um ser vivo (ou quase vivo), que amou, brincou e foi feliz no seu pequeno mundinho onde eu fui o pilar mais importante para ele.
A cada respiração entrecortada, a cada nervo repuxado de uma convulsão, há o meu medo que seja o último suspiro.: e eu ficava no meu profundo dilema; que ele se vá logo e pare de sofrer ou se permanece lutando pela vida, para satisfazer meu ego egoísta e medroso ao me perguntar.:
- Como vou viver sem o meu “pequena sombra”  a me seguir por todo lado?

... E continua a maratona de chás, diálogos, abraços e afagos...

E no terceiro dia em casa, o cotoco se abana, já dá os primeiros passos cambaleantes, já levanta a pata traseira pra fazer xixi (e cai logo depois)... e eu começo a sorrir sozinha, inundada de felicidade por cada migalha de melhora, um riso interior que me aquece o coração.
E quando ele, por iniciativa própria, come o primeiro pedaço de bifinho (ele fica exigente no cardápio), eu sinto que meu peito vai explodir de tanta alegria.
Hoje, uma semana depois do pesadelo da quase-morte, ele já consegue até dar aquela sacudidela sem cair, já levanta a perna no poste sem levar um tombo, seu corpinho já não é um esqueleto ambulante, seu olhar já tem o brilho da vida.
Eu já me tornei novamente o seu centro de alegria do seu pequeno mundo inocente, e eu agradeço a Deus pela dádiva da vida, da fé e do renascimento.
Uma nova lição foi aprendida.: Devemos sempre ter esperanças, e perseverar na trilha da vida, pois com fé e determinação os caminhos se tornam mais luminosos e você resgata um bem precioso, a felicidade de mais uma vitória conquistada.
Obrigada Deus, por me devolver meu pequeno Pitu para mais uma longa caminhada, com amor, dedicação e muito companheirismo.

Essa foi mais uma odisséia da Agda com seu cãozinho Pitu.