domingo, 25 de março de 2012

A visita do medo

A visita do medo.

Dois dias no  CECOM


Hoje fui ao Cecon (Hospital do câncer de Manaus). É onde há o interlúdio, a "quebra", entre a vida e a dor. É onde temos que andar trilhando a fé, a ânsia de viver, a esperança da cura, onde a matéria deve representar pouco, e o pouco que representa é triste.

E foi lá, neste dia de medo, que senti que nós só somos o que sentimos, e não o que temos.  E o que sentimos às vezes se transforma em dúvidas, medo e anseio. E também tristeza, por ver tantas mulheres mutiladas no corpo e na alma. Há homens também, mas a incidência maior é na mulher. São corpos deformados, onde o câncer come as carnes, fere os ossos, onde os corajosos esperam a cura e os desesperançados pedem a morte.

É muito triste, quem lida diretamente com doentes sabe disto, mas eu sempre viví no meio do riso e da alegria, do diálogo com os clientes o dia inteiro, com o comando aos funcionários, e hoje não pude comandar ninguém, não pude rir, porque o riso estava longe do meu rosto, realmente não consegui rir, e me perguntei se sou corajosa ou covarde.
Amanhã vou lá novamente, e espero que amanhã eu esteja mais forte, eu esteja mais preparada, porque hoje senti tanta vontade de dar alento a muita gente mas não pude, porque eu não soube o que dizer. Eu que sempre levei esperanças a muitos, hoje eu dei somente um olhar, e nada mais.

No segundo dia foi mais fácil porque nosso espírito está preparado a não levar o mesmo susto duas vezes seguida, e pude analisar com mais tranquilidade tudo o que eu via.
Lenços na cabeça, uma nova moldura à aparência da mulher, onde se esconde um couro cabeludo, sem ser mais cabeludo, onde o emocional de cada uma molda uma nova aura, porque já houve uma transposição entre o antes e o durante, porque os grandes obstáculos da vida geram um marco na nossa existência, gera um divisor.

Há o medo palpável nas fisionomias presentes, mas também risos de, espantem, pacientes de longa data, onde o medo inicial já foi substituído pela brisa da esperança, onde há vislumbre de um novo horizonte de cura. Há também muitos rostos mutilados, pedaços amputados, sacolinhas coletoras penduradas, declaração viva da doença existente e ainda não vencida, prova viva da nossa fragilidade e mortalidade.
O cuidado observado de se evitar o aglomerado e o acotovelamento, onde a dor é uma constante em muitos.: A dor física e emocional, quando há penumbras na alma. Para muitos não seria fácil enfrentar uma guerra de “cheguei primeiro” ou então “vivi minha vida pra terminar assim?”.  O serviço de auto-falante é usado com destreza, passando informações claras e constantes a todos que aguardam sentados (SENTADOS) a sua hora de consultas.

Lanche gratuito para pacientes e acompanhantes, pois muitos chegam no Cecom só com o dinheiro do ônibus, e passariam fome. E um corpo esfomeado é um corpo triste – A fome é triste, a dor é triste – E se puder eliminar pelo menos um dos inimigos (a fome), luta-se somente com a dor. Lanchei, apesar de ter dinheiro para pagar meu próprio lanche em outros pontos que pudesse lanchar, para falar com conhecimento de causa de que o leite não é azedo e o pão não é dormido.

O atendimento humanitário (gente a gente) é realmente de gente para gente e não de funcionário para bicho, pois é o que ocorre em muitas repartições públicas, onde os funcionários, estressados pelo meio em que trabalham, transferem adiante a aridez de seus sentimentos.

Quando o funcionário fala “algumas consultas podem demorar porque aqui é um “hospital de câncer” e exige tempo na consulta”, denota nesta frase todo um respeito pela dor e angústia do próximo e não somente a rigidez de uma necessidade de terminar logo a sua carga horária e ir embora. É um amor pelo próprio trabalho realizado.

Reconheço que não é fácil executar um trabalho em um ambiente em que para muitos (pacientes) seja o “quarto escuro dos pesadelos” e para outros seja a “porta do cemitério”, pois o próprio baixo astral dos “visitantes” tende a contaminar com mau-humor todo o ambiente.

O que muitos não se lembram é que no Cecon também poderá ser o reinicio de uma nova vida, sem câncer, sem dor, sem medo, e acredito que é nessa premissa que os colaboradores se norteiam para, a cada dia, com o seu trabalho, levar solidariedade àqueles que os procuram.

A gratificação dificilmente será visível, porque quando o sorriso daqueles que aqui um dia estiveram aflora, eles já estão longe, no seio da sua família. Mas o riso não se perde, assim como a esperança da cura também não, porque nem tudo é palpável, mas se houve a cura há o riso, em qualquer lugar, seja perto ou longe.

Assisti um momento com o grupo Gamma, e achei válido o intuito de levar DEUS a todos, com mensagens de esperança e fé, lembrando a todos que um dia temos que partir, portanto, enquanto esse momento definitivo não chega, vamos viver com alegria e fé. Não somos somente matéria, somos matéria e espírito, e, se a matéria está doente, vamos manter nosso espírito sadio, para que haja um balanceamento na nossa vida, afinal, nem só de pão vive o homem.

Os banheiros funcionam (há uma pia necessitando de reparos), e tem papel higiênico de qualidade, e isto é raro em inúmeros lugares públicos, observei também a brinquedoteca, para as crianças em tratamento e (eventualmente) os filhos de pacientes em tratamento ambulatorial, mais um exemplo de humanização.

Tudo isto nos mostra que, não importa nosso orgulho ou nossa soberba, somos mortais, e como tal, não vamos agir como deuses pagãos, e sim como mortais, nem melhor nem pior, respeitando o próximo, nos doando em prol de um bem maior, porque, quando nossa hora da “partida” chegar, nós tenhamos “créditos espirituais” e possamos ter a certeza que realmente VIVEMOS e não somente que só passamos por esta vida vegetando na mentira emocional de que somos GENTE.

Por traz de todo esse labor, existe uma administração, e é daí que vem a “política de trabalho”, é daí que vem a orientação, as diretrizes a serem seguidas, o respeito pelo paciente, o respeito pelo dinheiro público, dinheiro este usado para cicatrizar as feridas do câncer. Esta administração, até onde pude observar (só visitei o ambulatório), está de parabéns pelo trabalho executado, pois leva em conta os meios para justificar os fins.: Não importa somente a cura, mas sim como cura. Com humanidade.
Parabéns ao CECOM, foi válido conhecer o trabalho de vocês, mas espero que, dependendo dos resultados dos exames laboratoriais, esses dois dias de visita aí fique somente na memória, porque, apesar de toda boa percepção que tive, espero não retornar...

Agda Meneses

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Matéria postada no blog.: WWW.cicatrizesdadroga.blogspot.com